O assédio moral, à luz do filme ‘O Diabo Veste Prada’

28/03/2015 08:27

Nildes Raimunda Pitombo Leite

Profª Adjunta da Universidade Federal de São Paulo – Campus Osasco

Líder do Grupo de Pesquisas, junto ao CNPq, ‘Estudos Observacionais no Processo de Ensino-Aprendizagem e Pesquisa em Administração’

 

Este texto tomou por base o assédio moral para a análise do filme ‘O Diabo Veste Prada’, dirigido por David Frankel (2006). Esse filme é composto por um conjunto de 37 cenas, nas quais podem ser observados comportamentos sutis e subconjunto de comportamentos negativos, sem que tais comportamentos representem, necessariamente, um contra-ataque, mas são frutos das relações de poder, implícitas ou explícitas, descendentes ou horizontais. Conforme advogado por Freitas (2007), o assédio moral no trabalho é um fenômeno que, simultaneamente, diz respeito às esferas individual, organizacional e social e, como tal, impactam de modo sobreposto nessas esferas, ainda que em diferentes graus.

O recorte escolhido para a análise desse filme foi o do assédio moral voltado ao comportamento organizacional, no que tange aos prejuízos causados pela manifestação de comportamentos desse assédio considerado abusivo, degradante, humilhante, e que atenta contra a dignidade e / ou a integridade psíquica ou física da pessoa. Relembrando o alerta dado por Corrêa e Carrieri (2007), por ser a organização um ambiente de constantes interações sociais, é também palco de disputas de poder. Nesse contexto, muitas organizações tendem a desenvolver práticas de centralização de domínio e de autoritarismo que podem recair em assédio moral. Nessas organizações, esse tipo de assédio pode colocar em risco o emprego da pessoa assediada e/ou degradar o ambiente de trabalho no qual essa pessoa está inserida.

O assédio moral em si mesmo, é um comportamento moderado ou fraco, conforme visto em Mendonça, Torres e Zanini (2008), no que se refere à agressividade e / ou violência, mas repetitivo. Essa repetição pode ser observada ao longo de quase todo o conjunto de cenas do filme, enfatizadamente no relacionamento interpessoal descendente - chefe (Miranda Priestly) e subordinadas assistentes (Andrea Sachs e Emily Charlton). Em alguns conjuntos de cenas, entretanto, esse comportamento é visto também no relacionamento interpessoal horizontal, partindo de Emily e Serena para Andrea.

No que diz respeito à sutileza do assédio moral, podem ser vistos nos conjuntos de cenas iniciais: a) todos na revista de moda RUNWAY Americana, movimentam-se agitadamente e tentam colocar apressadamente as coisas em ordem, tão somente porque Emily recebeu a mensagem da chegada antecipada de Miranda ao escritório; b) Miranda chega ao prédio e, ao entrar no elevador, uma funcionária se retira pedindo-lhe desculpas e indo para outro elevador; c) na entrada da sede da revista, Emily esforça-se para mostrar-se eficiente e ouve palavras de humilhação ditas por Miranda; d) enquanto Miranda caminha pelo corredor dando as ordens para Emily, quatro pessoas, cada uma a seu tempo e andando no sentido contrário, imediatamente retornam ao perceberem a presença de Miranda; e) Miranda deposita a bolsa e o casaco nas mãos de Emily para que ela guarde nos lugares corretos; e, f) Miranda olha para a candidata à segunda assistente, Andrea, de modo intimidador, durante a entrevista; g) após ser contratada Andrea é chamada pelo nome de Emily, reiteradas vezes, mesmo após ter dito como se chamava, sob o sorriso sarcástico de Miranda.

Quanto ao assédio moral constituir um subconjunto de comportamentos negativos, como registrado por Mendonça, Torres e Zanini (2008), Miranda mostra esse subconjunto no conjunto das cenas 2, repetidamente, quando: a) diz para Emily que “os detalhes da sua incompetência não me interessam”; b) ao finalizar as ordens para Emily, do corredor até a entrada da sua sala, deixa clara a falta de separação entre o que deve ser executado pela assistente, dentro e fora do escopo do seu trabalho; e, c) diz à candidata Andrea que ela “não tem estilo nem noção de moda”. Esse subconjunto se mostra também no conjunto de cenas 6, quando Miranda olha incisivamente para Andrea, dos pés à cabeça e lhe diz, na frente de duas pessoas estranhas: “isso é tudo”. No conjunto de cenas 7 Miranda joga a bolsa e o casaco sobre a mesa de Andrea para serem guardados, sem quaisquer explicações.

Voltando ao conjunto de cenas 2, pode-se observar o assédio moral visto mais próximo às relações implícitas e explícitas de poder, no relacionamento interpessoal horizontal quando, ainda candidata, Andrea ouve de Emily, após o olhar recriminador: “o pessoal de Recursos Humanos tem mesmo senso de humor”. A ascendência dessa assistente sobre a candidata é quase imaginária, mas ainda assim se dá o assédio. Essa forma imaginária de ascendência fica confirmada, após Miranda dizer para Emily que não era parte do seu papel fazer a pre-entrevista.

Do mesmo modo, no conjunto de cenas 5, Emily: a) por telefone, acorda Andrea às 06:15 da manhã, ordenando-a para estar no escritório imediatamente, trazendo o café de Miranda; b) diz que o trabalho é difícil e não serve mesmo para Andrea, acrescentando: “e, se fizer algo errado, é a minha cabeça que vai rolar”; e, c) afirma para Andrea: “temos trabalhos diferentes. Você pega o café e faz serviços diversos. Eu cuido da agenda dela, dos compromissos e despesas e, o mais importante, vou a Paris com ela para a semana da moda. Visto alta-costura, vou aos desfiles e festas, conheço os designers”. No conjunto de cenas 6, após olhar para Andrea, Emily pergunta: “tem algum compromisso? Reunião de mulheres com saias medonhas”? Posteriormente, entre os conjuntos de cenas 7 e 8, Emily aparece com Serena dizendo a Andrea que vão almoçar. Olham-na e comentam inescrupulosamente; “- Eu falei para você”. “- Achei que era brincadeira”. Saem rindo e ainda comentam: “- O que ela está usando?” “- A saia da avó dela”. Como alertado por Freitas (2007) muitas organizações, ao negligenciarem os efeitos da inveja e do desdém por parte dos colegas podem perder um profissional altamente capacitado, em virtude do ambiente desestimulante e hostil.

No que se refere ao assédio moral descendente, fruto das relações de poder, no conjunto de cenas 10, Miranda, repetidamente: a) joga a bolsa e o casaco sobre a mesa de Andrea, logo ao chegar, todos os dias, sem nada dizer; b) solicita a Andrea, sem descanso, cafés, refeições checagem de freio do carro, tarefas e objetos para as filhas gêmeas, buscar a cachorra em algum lugar, fazer compras e reservas para jantares pessoais.

No conjunto de cenas 11 o jantar de Andrea com seu pai é interrompido por um telefonema de Miranda exigindo que fosse feito o impossível para voltar para casa, mesmo com todos os voos cancelados devido ao mal tempo. No conjunto de cenas 12 Miranda fala para Andrea sobre a sua contratação, como uma moça “gorda e inteligente”, em lugar de “tolas e cheias de estilo” e diz da sua decepção por Andrea não ter conseguido fazer ninguém voar no mal tempo, o que a impediu de ver o recital das filhas gêmeas.

Somente a partir do conjunto de cenas 17, Miranda passou a chamar Andrea por seu próprio nome e não mais pelo nome de Emily. Nos conjuntos das cenas subsequentes Miranda deu mostras da sua admiração pela inteligência e desenvoltura de Andrea. Como assinalado por Mendonça, Torres e Zanini (2008), o assédio moral não é, necessariamente, um contra-ataque. Nos conjuntos de cenas 22 e 23, Miranda exigiu que Andrea substituísse Emily na equipe que seguiria para a semana da moda em Paris, mesmo sob os protestos de Andrea. Exigiu, sobretudo, que fosse a própria Andrea a avisar Emily. Nesses mesmos conjuntos, Miranda jogou a bolsa e o casaco sobre a mesa e o computador de Emily, mesmo sem ela estar presente e sob o olhar atento e reflexivo de Andrea.

No conjunto de cenas 32, Miranda disse a Andrea que ela fez escolha própria ao ir para Paris em lugar de Emily, dentre outras afirmações. Andrea perguntou: “[...] e se não for o que eu quero? Se eu não quiser viver a minha vida como você”? Miranda respondeu: “não seja ridícula, Andrea. Todo mundo quer isso. Todo mundo quer ser como nós”. Miranda desceu do carro em meio ao glamour e aos holofotes. Andrea desceu e seguiu na direção contrária. Não atendeu ao telefonema de Miranda e jogou o aparelho celular em um fonte por onde passava.

Já de volta a New York, no conjunto de cenas 35 Andrea ficou sabendo da arrogância de Emily ao receber o telefonema pedindo referências e recebeu surpresa a notícia da recomendação de Miranda, enviada por fax para Greg Hill contratá-la como jornalista no The New York Mirror. No filme, Andrea superou as dores causadas pelo assédio moral no trabalho.

No cotidiano das organizações, entretanto, não se pode negligenciar para o conjunto de dados alertado por Freitas (2007): a) a importância de conscientizar a todos sobre o fato de que o assédio moral é um fenômeno devastador na vida de uma pessoa; b) diz respeito a todos em todas as esferas (individual, organizacional e social); c) os responsáveis pelo assédio nas organizações devem e podem ser punidos sem complacência; d) não se pode escamotear essa questão, sob pena de ser endossado um comportamento que fere o mais sagrado de todos os direitos das pessoas: o de ser tratado como um ser humano; e) o assédio moral é tanto uma questão moral como econômica e social; e, f) o assédio moral é um crime, e como tal deve ser prevenido e evitado.

 

Referências

 

Corrêa, A. M. H.; Carrieri, A. P. (2007). Percurso semântico do assédio moral na trajetória profissional de mulheres gerentes. In: RAE, v. 6, n. 1, Art. 5. jan./mar.

 

Frankel, D. (2006). The Devil Wears Prada (O Diabo Veste Prada).

 

Freitas, M. E. (2007). Quem paga a conta do assédio moral no trabalho? In: RAE- eletrônica - v. 6, n. 1, Art. 5. jan./jun.

 

Mendonça, H.; Torres, A. R. R.; Zanini, D. S. (2008). Assédio moral e retaliação organizacional: interfaces teórica e metodológica. In: Revista rPOT, v.8, n.1, p. 60-72.